- Como vem evoluindo a situação da pesca no Brasil, do ponto de vista da sustentabilidade? Temos uma piora do quadro, ou há alguma evolução no sentido de uma produção mais sustentável? Sob esse aspecto, como se situa o Brasil em relação ao mundo? (Você prefere falar apenas da pesca marinha ou da pesca em geral?)
Além da distinção entre a pesca marinha e a de água doce, há de se ressaltar a distinção da produção da pesca propriamente dita e da aquicultura. O foco do Guia de Consumo Responsável Pescados Unimonte se restringe às espécies oriundas da pesca (selvagem) marinha, mas em alguns assuntos, gostaria de avançar na discussão da aquicultura, pois está na pauta da Aliança Brasileira pela Pesca Sustentável.
No âmbito global, os estoques pesqueiros marinhos vêm sofrendo uma pressão crescente nas últimas décadas, e os dados mais atuais publicados pela FAO (Food and Agriculture Organization of the United Nations) com base em dados de avaliação de estoques, indicam que mais de 30% dos estoques pesqueiros encontram-se em níveis de sobrepesca, ou seja, estão sendo explotados além do nível biologicamente sustentável.
http://www.fao.org/3/a-i5555e.pdf
Embora alguns pesquisadores tracem um futuro desanimador e até “sombrio” para a pesca, com um colapso total antes de 2050, outros preveem um futuro mais promissor, SE, E DESDE QUE medidas adequadas de gestão e manejo forem implantadas.
https://www.oceanprosperityroadmap.org/wp-content/uploads/2015/05/Synthesis-Report-6.14.15.pdf
Alguns compromissos globais anunciados recentemente, como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), são favoráveis à melhoria das condições de pesca no nível mundial, pois pela primeira vez, há um conjunto específico de objetivos centrados nos oceanos (Objetivo 14: Conservar e usar sustentavelmente os oceanos, os mares e os recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável), que devem orientar ações governamentais, agências internacionais, sociedade civil e outras instituições nos próximos 15 anos (2016-2030).
Para o Brasil, as informações são mais difíceis de obter e os trabalhos de síntese já se encontram ultrapassados. Não existem dados oficias de desembarque pesqueiro no país de forma organizada e oficial, desde 2011. O Ministério da Pesca foi criado em 2003 e extinto em outubro de 2015. Nesse período, passaram pela pasta sete diferentes ministros, a grande maioria sem qualquer conhecimento técnico sobre o assunto. Alguns avanços como o sistema de Gestão Compartilhada dos Recursos Pesqueiros (MMA e MPA) e a criação e manutenção dos Comitês Permanentes de Gestão e Uso Sustentável, com seus subcomitês científicos precisam ser mantidos, mas a instabilidade política e a fragilidade dos mecanismos de controle e gestão, geram muita incerteza e desconfiança no setor.
Temos uma lista de espécies de peixes e invertebrados aquáticos ameaçados de extinção, gerada pelo trabalho sério e metodologicamente embasado por pesquisadores brasileiros renomados e organizações internacionais, que atrelada a uma Portaria Ministerial (MMA nº 445/2014), encontra-se suspensa. Sem os efeitos da Portaria que se propõe a proteger de modo integral as espécies ameaçadas a partir de medidas de restrição à captura, ao transporte, à guarda, ao armazenamento, ao manejo, ao beneficiamento e à sua comercialização, essas espécies permanecem sem proteção legal no país.
Além da questão conservacionista, a proteção aos recursos pesqueiros e a manutenção dos estoques está intimamente ligada às questões de segurança alimentar e de geração de empregos. Dados científicos sustentam que cerca de 60% do pescado desembarcado para consumo humano no mundo, provém de pescarias de pequena escala, que empregam cerca de 12 milhões de trabalhadores.
No Brasil, os pescadores e pescadoras artesanais têm, gradativamente, conquistado espaço nas discussões, qualificando seu discurso e empoderando suas lideranças, através de movimentos sociais, eventos e campanhas, como a Campanha Nacional pela Regularização do Território das Comunidades Tradicionais Pesqueiras. Algumas ONGs internacionais, como OCEANA e RARE, iniciaram recentemente suas ações no Brasil, através da iniciativa Vibrant Oceans, que também gerou relatórios de investimentos em pescarias industriais e de pequena escala no Brasil.
As “Diretrizes Voluntárias para garantir a pesca sustentável em pequena escala no contexto da segurança alimentar e da erradicação da pobreza” publicada pela FAO em 2015, já gerou sua tradução e um seminário de capacitação no Brasil, em junho de 2016, organizado pela Ouvidoria do Mar.
- Quais as razões para isso?
Em parte já respondida anteriormente, eu citaria uma fala muito recente de Mônica Brick Peres, diretora da OCEANA no Brasil :
“A falta de informações impede o desenvolvimento de políticas públicas eficientes. E isso faz com que a maioria das pescarias no Brasil tenha os seus recursos-alvo sobrepescados, colocando em risco a atividade. É preciso superar essa situação”
- Os oceanos são menos estudados e conhecidos que os ecossistemas terrestres. Este seria um dos motivos? (veja aqui a edição que publicamos sobre oceanos há alguns anos: http://pagina22.com.br/wp-content/uploads/2009/07/Pagina22_Ed79.pdf)
O Guia de Consumo Responsável de Pescados Unimonte, em sua primeira versão, de 2008, foi citado na edição.
Parte da falta de conhecimento dos oceanos, do ponto de vista da pesquisa, reside nos custos elevados de operações de coleta em mar profundo. Cerca de 90% dos fundos oceânicos está a mais de 3.000 metros de profundidade. Mas 90 % da pesca mundial é efetuada em águas costeiras, onde a produtividade primária é superior. Em águas profundas, a pesca pode não ser rentável o suficiente para a manutenção de uma frota. Por isso barcos com redes gigantescas e infindáveis, varrem as áreas oceânicas. As pescarias precisam de escala para serem lucrativas nessas regiões.
Mas a exploração de recursos minerais é muito lucrativa em águas profundas e aí reside uma grande ameaça. Os acidentes com petróleo, como o do Golfo do México, geram impactos muito grandes sobre a fauna de áreas profundas e não sabemos mensurar esse impacto, pois nem conhecemos o que há nessas regiões, menos ainda se há espécies passíveis de exploração pesqueira. O tráfego de embarcações e as técnicas de exploração também podem representar ameaças aos recursos vivos. Nesses casos, em particular no Brasil, a comunidade científica se beneficia da legislação ambiental que obriga as empresas a manterem programas de levantamento e monitoramento, e planos de contingência, que demandam a coleta de dados. Esses recursos têm estruturado redes de coleta de dados pesqueiros em todo o país, além do monitoramento de encalhes em toda a costa brasileira.
- Na sua opinião, qual a melhor forma de enfrentar esse problema?
Existem inúmeras formas de enfrentar esse problema, e acredito que os muitos segmentos, trabalhando em conjunto em algumas questões e isoladamente em outras, podem ter um impacto significativa na mudança desse cenário.
No caso específico do consumo responsável, pretendemos trabalhar especificamente a educação do consumidor. Informá-lo sobre o que deve e o que não deve comprar e consumir (em casa ou fora de casa) e porque deve fazê-lo. Para isso, podemos abordá-los diretamente, ou trabalhar com todos os outros elos do processo produtivo que têm o consumidor no final da cadeia. Assim, tentamos trazer para a Aliança Brasileira pela Pesca Sustentável desde o pescador artesanal, até a maior empresa de food service do mundo.
- Qual o papel do Estado e dos produtores?
Deveria ser um compromisso do Estado: coletar e analisar os dados de desembarque pesqueiro, direcionar recursos e demandar os levantamentos de estoques de interesse para o país, que resultassem em medidas de controle e manejo. Mas como já exposto, esse papel está longe de ser cumprido.
Os produtores, se tivessem informações e cultura de longo prazo, procurariam se organizar e exigir o cumprimento do papel do Estado, e no mínimo, criariam estratégias de auto-regulamentação do setor. Mas não faz parte da cultura brasileira. O imediatismo e a máxima do “vale mais um pássaro na mão do que dois voando” prevalecem....
Parece a mim (mas não sou especialista nem nunca me debrucei sobre esse assunto), que os aquicultores paulistas seguiram esse caminho.
- Como o consumidor pode contribuir?
O papel do consumidor seria exigir o compromisso dos seus fornecedores, sejam eles o peixeiro da feira, o grande supermercado ou o dono do restaurante, de que eles só ofertassem os peixes que não estão em risco, do ponto de vista dos estoques pesqueiros. Esse é o cenário ideal, quando todos os consumidores tivessem acesso às informações e as utilizasse de forma consciente, criando assim um efeito de diminuição de demanda, o que acaba implicando na diminuição da captura. Mas temos um longo caminho a trilhar até chegarmos a esse patamar. Nesse meio tempo os consumidores poderiam começar a se interessar em conhecer a “história do peixe”. Gostaríamos que eles se interessassem por saber “quem” é aquele peixe, onde foi pescado, de que forma foi pescado, se ele está em risco, se ele oferece algum risco à saúde, etc.
- Para que o consumidor contribua, ele deve primeiramente ser bem informado, certo? Existe informação suficiente? São necessárias campanhas? Qual o papel dos veículos de comunicação?
Exatamente como mencionei acima. Depois de alguns anos em que temos trabalhado com o consumidor diretamente, chegamos à conclusão que devemos agir a partir de frentes variadas. Se trabalharmos com o grande varejo, limitando na fonte a oferta de pescados não sustentáveis, a escolha do consumidor vai ser feita a partir de um universo menor de opções, o que facilita a comunicação. As campanhas ou o material impresso ou digital, por si só, não têm muito efeito se não houver uma figura pública “defendendo a causa”. No mundo todo, a opção lógica tem sido pelos chefs de destaque que hoje conquistaram a grande mídia e são figuras expressivas para o público comum, ou aqueles que comandam programas de TV que abordam a gastronomia. Aqui em São Paulo, já fizemos algumas parcerias com o C5 (Centro de Cultura Culinária Câmara Cascudo) e o Slow Fish – Slow Food Brasil. Estamos ampliando a proposta, e o chef Alex Atala esteve no Aquário de Monterey Bay no Sustainable Foods Institute, quando oficializou o compromisso dos seus restaurantes D.O.M e Dalva & Dito com o Seafood Watch.
A partir de uma parceria entre a ANIMA e o Seafood Watch, planejamos criar uma marca que passe a ser referência no país para as recomendações de consumo. Nessa etapa, os veículos de comunicação passarão a ter uma importância imensa, pois a questão da referência é muito importante para o sucesso da conscientização.
- Como despertar a consciência em relação ao consumo responsável? Essa consciência não deve ser trabalhada também ao produtor?
Pretendemos trabalhar em parceria de várias formas, e a partir da própria origem do Seafood Watch, que nasceu no Aquário de Monterey Bay, pretendemos trabalhar fortemente com os aquários. Já reunimos na Aliança Brasileira pela Pesca Sustentável os aquários de Ubatuba e o recém-inaugurado AquaRio. Em Monterey, uma área específica simula um café, onde os visitantes selecionam seus pratos a partir de um menu virtual e chefs consagrados atendem aos “clientes” através de vídeos gravados, dando informações sobre os pescados selecionados.
A distribuição dos guias em formato impresso nesses locais de grande circulação nos garantiria um alcance bastante significativo. Além disso, os programas educacionais previstos nesses aquários, que recebem muitas escolas de diversos níveis, nos oferece espaço para a conscientização de crianças e jovens, que podem mudar a mentalidade de consumo nas próximas gerações.
Por parte dos produtores, a consciência deveria ser ainda mais aprofundada, uma vez que garantiria a manutenção do seu “ganha pão” em médio e longo prazo. Mas como disse antes, muitas vezes o imediatismo e a ganância ao observar a abundância do recurso fala mais alto. Ainda temos que trabalhar para corrigir muitas distorções, mas de maneira generalizada, o pescador artesanal, tradicional, que envolve sua família na atividade há muitas gerações, tem mais consciência sobre sustentabilidade do que os grandes armadores industriais, que em tese, têm mais acesso à informação.
- Onde se pode encontrar o Guia de Consumo Responsável de Pescados? Está disponível digitalmente?
A versão 2014 do Guia de Consumo Responsável de Pescados Unimonte foi elaborada no contexto do Projeto Pescador Amigo, executado pela ONG Projeto Biopesca em parceria com a Unimonte. Na época, além do guia impresso, foram elaboradas fichas biológicas de cada uma das espécies indicadas, com dados de ciclo de vida, ocorrência, nomes populares e foto dos animais, entre outros. As atividades do Projeto Pescador Amigo foram patrocinadas durante dois anos pelo Programa Socioambiental da Petrobras, e foi encerrado em agosto de 2015. Assim, a página mantida pelo projeto com a versão interativa e digital do guia (http://guiadeconsumodepescados.eco.br) foi tirada do ar.
Mas a versão em formato de bolso para impressão continua disponível para download no Portal da Unimonte, em http://www.unimonte.br/sustentabilidade/o-jeito-sustentavel-de-ser-da-unimonte-16
- Uma reportagem recentemente divulgada na tevê mostrou que o consumidor não sabe nem mesmo que espécie de peixe está levando para casa. Que evolução existe no desenvolvimento e na disseminação de certificados de origem?
O estudo “Levantamento e caracterização do comércio de pescados nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo” foi realizado entre abril e maio de 2014, pelo SOS Mata Atlântica. Nele, muitas trocas de rotulagem de pescados foram apontadas. É muito difícil para o consumidor, mesmo que seja informado e consciente, distinguir uma posta de peixe de outra de espécies semelhantes. Mas isso não é uma situação brasileira, é uma prática disseminada no mundo todo. Um relatório da OCEANA, de 2013, nos EUA mostra índices elevados de fraudes na identificação de pescados.
O Ministério do Meio Ambiente, através da coordenação de recursos pesqueiros do IBAMA, tenta operacionalizar, desde 2008, o Documento de Origem do Pescado (DOP), um sistema eletrônico que visa impedir ou prevenir a pesca ilegal nas cadeias produtivas pesqueiras através do monitoramento e controle do transporte e comercialização de pescado. Mas, como todos os processos em nível federal na atualidade, esse é mais um projeto que anda a passos muito lentos.
Temos algumas boas iniciativas privadas que desenvolvem técnicas para a identificação no nível de DNA dos produtos de origem vegetal e animal. No caso específico de pescados, a Myleus Biotecnologia desenvolve um trabalho importante com algumas agências governamentais para combater essas fraudes. Trabalha ainda no desenvolvimento de selos de certificação de origem para pescados, em especial o salmão.
Na questão de rastreabilidade da cadeia de pescados, ainda estamos muito longe do que se pode observar fora do país. A certificação é uma assunto que renderia muitas páginas e eu preciso ainda de muito estudo para poder falar com desenvoltura sobre isso, mas uma das premissas da certificação é a garantia da rastreabilidade do produto. No caso da pesca, a única iniciativa que eu conheço é a desenvolvida no âmbito do Projeto Pesca + Sustentável da Conservação Internacional, um dos ganhadores do Desafio de Impacto Social Google 2014. Uma parceria com a This Fish, uma empresa canadense, tem permitido que os caranguejos do mangue capturados e comercializados pelo projeto sejam rastreados desde sua origem até o consumidor, através de um QR Code.
- Como direcionar o consumo para espécies abundantes e restringir o de espécies sob risco?
Muitas são as estratégias, mas vamos nos focar nos compromissos de sustentabilidade dos grandes varejistas e na informação ao consumidor final, através de eventos e formadores de opinião.
Queremos trabalhar ainda em uma publicação de receitas estreladas por grandes chefs que divulguem algumas espécies abundantes mas pouco valorizadas e reconhecidas.
- Em 1º de novembro, o governador Geraldo Alckmin assinou decreto que, segundo o simplifica procedimentos para a piscicultura e aquicultura paulistas e dinamiza as regras para obter o licenciamento ambiental no Estado. Qual a sua avaliação sobre esse decreto e quais os riscos ambientais que essa “dinamização” traz?
Não me sinto à vontade para responder sobre esse assunto, muito embora através da parceria com o Seafood Watch pretendamos trabalhar com as recomendações de tilápia e pirarucu provenientes de cultivos.
Não acompanhei o processo e não tenho familiaridade com os indicadores de sustentabilidade considerados nos processos de licenciamento.
- Qual o histórico desse decreto? Partiu de alguma pressão dos produtores?
Também não sei responder, mas tenho alguns indicativos.
O pai do governador Geraldo Alckmin era médico veterinário e foi diretor do Instituto de Pesca. Já ouvi isso do próprio governador em alguns eventos. O atual diretor do Instituto de Pesca é diretamente envolvido com os produtores do Estado, pois é pesquisador da área de cultivo de tilápias.
No site da Peixe BR, a notícia é claramente dada como uma “vitória da cadeia da piscicultura paulista”.
Mas não acho que seja ruim, pois esses mesmos produtores e o Instituto de Pesca trabalham há anos em um projeto conjunto do SEBRAE e INMETRO para a definição de normas de cultivo para peixes de água doce, publicadas como normas ABNT em 2015.
Recentemente, a GeneSeas, com planta de produção em São Paulo conquistou a certificação Best Aquaculture Practices (BAP), avalizada pela organização Global Aquaculture Alliance (GAA), com vistas à exportação de tilápias.
E por fim...
Encontrei algumas notícias sobre a entrada da maior companhia produtora de tilápias no mundo, a Regal Springs, no Brasil, através de uma joint venture com a brasileira Axial Holding, criando a Tilabras.
O Estado de São Paulo não poderia ficar de fora, poderia?!?