Há muito tempo o consumo da carne de cação vem sendo questionado por ambientalistas mundo afora. Nos últimos anos, a urgência das questões climáticas tem trazido à tona muitas das pautas ambientais e de sustentabilidade, antes restritas a públicos específicos, para a discussão junto ao público em geral. Além disso, as discussões sobre as ações para a Década das Nações Unidas da Ciência Oceânica pelo Desenvolvimento Sustentável (2021-2030), ou simplesmente “Década do Oceano”, desencadeou o florescimento de um número elevado de canais de mídia social que abordam esse tema de diversas formas, alguns mais técnicos, outros mais sensacionalistas.
No cenário global, o documentário Seaspiracy, da Netflix, causou controvérsia ao questionar a real possibilidade de uma pesca industrial sustentável, sugerindo aos espectadores que a solução para os horrores da pesca seria a adoção de uma dieta vegana. Impulsionada pela repercussão do documentário, a ONG Sea Shepherd Brasil lançou recentemente a campanha “Cação é Tubarão”, que tem como objetivos “identificar e acabar com a caça ilegal de tubarão no Brasil” através da ação dos consumidores, conclamados a atuar como cientistas cidadãos, coletando dados sobre a comercialização e consumo dos tubarões.
Mas afinal, quais são os problemas relacionados ao consumo desse pescado?
Tubarão ou cação?
Segundo a Instrução Normativa no 53, de 1o de setembro de 2020, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, que “Define o nome comum e respectivos nomes científicos para as principais espécies de peixes de interesse comercial destinados ao comércio nacional”, a denominação comum cação ou tubarão se aplica igualmente para 24 diferentes espécies, além de todas as espécies dos gêneros Carcharhinus, Mustelus, Nothorynchus e Sphyrna. Por outro lado, apenas o nome cação é aceito para as espécies dos gêneros Squalus e Squatina, e tubarão se restringe à espécie Rhincodon typus (tubarão-baleia), que por ser uma espécie ameaçada de extinção, tem sua comercialização proibida em território nacional.
Dessa forma, cação é o nome comercialmente aceito para todas as espécies de tubarões consumidos como alimento no país. No entanto, a maioria dos consumidores não associa a carne de cação ao animal que conhecem como tubarão.
Além disso, uma vez que a norma permite o uso de uma nomenclatura imprecisa (muitos nomes iguais para espécies diferentes e espécies diferentes conhecidas pelo mesmo nome), o controle e a fiscalização, tanto da pesca como da comercialização ficam dificultados, quando não, impossíveis.
Os tubarões são peixes de um grupo que inclui as raias (ou arraias), que têm o esqueleto composto principalmente de estruturas cartilaginosas (menos rígidas do que os ossos). São um grupo muito diversificado, que apareceu há cerca de 400 milhões de anos nos oceanos. Ao longo dessa história, se diferenciaram em quase 400 espécies de diferentes hábitos, tamanhos e formas. Todos os tubarões são carnívoros, mas nem todos têm comportamento de um predador ativo. Alguns são filtradores (como o tubarão-baleia, o maior de todos em tamanho) e vagam pelo oceano de boca aberta capturando suas presas, enquanto a grande maioria desenvolveu inúmeras e sofisticadas estratégias para localizar, perseguir, abocanhar e dilacerar suas presas, como predadores vorazes. São considerados predadores de topo da cadeia alimentar, pois normalmente não há predadores para eles (com exceção do homem).
E por que estão ameaçados?
Os tubarões, normalmente, são animais de vida longa, que demoram a atingir a maturidade sexual, e quando se reproduzem geram um número reduzido de filhotes. As populações de animais com esse tipo de estratégia reprodutiva são mais sensíveis às pressões de pesca, pois a captura de jovens que ainda não se reproduziram impede que as populações se reestabeleçam rapidamente, exigindo longos ciclos de recuperação.
Muitas espécies de tubarão são consideradas ameaçadas de extinção e a pesca é a atividade que, sem dúvida, ocasiona o maior impacto nas populações desses animais. Estima-se que em todo o mundo, 100 milhões de tubarões sejam capturados todos os anos e estudos recentes indicam que devido à pesca, algumas populações apresentaram uma diminuição de até 98% no número de indivíduos nos últimos 60 anos, colocando-as em risco iminente de extinção.
A IUCN (International Union for Conservation of Nature) é a organização mundial que define os parâmetros e critérios que categorizam uma espécie como ameaçada de extinção e esta ameaça por ser qualificada em diferentes graus: “criticamente em perigo” (CR), “em perigo” (EN) ou “vulnerável” (VU). Aproximadamente 37% de todas as espécies de tubarões e raias em todo o mundo são consideradas ameaçadas, segundo o mais recente levantamento publicado pela IUCN.
Como chegamos a esse ponto?
Embora a carne de cação seja comumente consumida pelos brasileiros, ela não é uma das mais apreciadas em todo o mundo. As principais pescarias comerciais que têm os tubarões como espécies-alvo destinam-se a abastecer um mercado específico, o de barbatanas desidratadas utilizadas no preparo de sopas, que são um símbolo de status social em diversos países asiáticos. Atualmente, cerca de metade das barbatanas de tubarão do mundo vai para o mercado de Hong Kong e a Indonésia é a principal origem.
Popularmente chamadas de barbatanas, essas estruturas são, na verdade, as nadadeiras desses animais. Geralmente bem desenvolvidas, elas conferem estabilidade, propulsão e força a esses predadores. Como as nadadeiras alcançam valores de mercados muito superiores aos da carne do animal, para aumentar o poder de pesca das embarcações, um método cruel e desumano foi desenvolvido: o chamado finning (fin é o termo em inglês para nadadeira), que é retirada das nadadeiras e o posterior descarte do restante do corpo do animal de volta ao mar. O finning é praticado, muitas vezes, com o animal ainda vivo e assim ele é devolvido ao mar, onde morre em agonia, sufocado e sangrando.
A nadadeira dorsal dos tubarões é a mais “famosa” das nadadeiras, por se projetar para fora da água quando o animal está próximo à superfície, anunciando a sua presença ao banhista ou surfista apavorado. Um tubarão típico tem oito nadadeiras: duas dorsais, duas peitorais, duas pélvicas, uma nadadeira anal e uma caudal, mas no total, elas representam apenas de 5 a 8% do peso total do animal.
A proibição do finning
Por sua extrema crueldade e por permitir que quantidades imensas de tubarões sejam mortas por viagem de pesca, a prática do finning foi banida em diversos países e originou inúmeros protestos e campanhas em nível global. No entanto, inúmeras nações ainda permitem que o finning seja praticado, ou não têm regras estabelecidas que coíbam tal prática.
No Brasil, a Instrução Normativa Interministerial MPA/MMA no 14/2012 regulamenta o desembarque, o transporte, o armazenamento e a comercialização de tubarões e raias capturados nas águas brasileiras. Ela proíbe o desembarque de tubarões e raias sem as barbatanas naturalmente aderidas ao corpo do animal.
Afinal, a pesca de tubarões é proibida no Brasil?
Não, a pesca não é proibida, desde que cumprida a regra do desembarque com as barbatanas para as espécies não consideradas sob ameaça, mas a pesca de espécies ameaçadas é proibida.
O SINDIPI – Sindicato dos Armadores e das Indústrias da Pesca de Itajaí e Região produziu a 1ª edição do “Guia Fotográfico das principais espécies de tubarões capturadas nas pescarias comerciais das regiões Sudeste e Sul do Brasil”. Das 19 espécies abordadas, 12 estão proibidas pela Portaria MMA nº 445/2014 ou por outras legislações específicas. No entanto, das sete espécies consideradas permitidas, duas delas (Isurus oxyrinchus e Lamna nasus) são listadas no Anexo II da Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (CITES).
Quando comercializados sem as nadadeiras, sem a cabeça e as vísceras, o chamado “charuto” de cação é muito difícil de ser identificado corretamente e espécies ameaçadas podem ser comercializadas juntamente com espécies não ameaçadas. A venda em postas, dificulta ainda mais a correta identificação das espécies, havendo até mesmo a mistura de carne de cação e de raias.
E o que é mislabelling?
Ao pé da letra, mislabelling seria “rotulagem incorreta”. Mas seja por puro engano ou má-fé, a maior parte dos equívocos de identificação são observados em mercados menos formais, como nas feiras livres e pequenas peixarias, onde não há sequer rótulos ou etiquetas. Para além de querer vender gato por lebre, essa prática normalmente visa “legalizar” a comercialização de espécies ameaçadas de extinção, cuja pesca é proibida.
Um estudo recente, conduzido por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mostra que ainda há uma elevada incidência de espécies ameaçadas do grupo dos tubarões e raias sendo comercializadas ilegalmente (63% em 221 amostras analisadas). Essas fraudes ocorrem principalmente no grupo das raias, em especial as chamadas raias-viola. No entanto, não se observaram quaisquer indícios de fraude nas amostras coletadas em supermercados.
Comer cação pode ser prejudicial à saúde?
Uma das motivações para o consumo de carne de cação no Brasil vem da ausência de espinhas em sua carne. Essa característica chega a ser valorizada na oferta desse pescado para crianças em tenra idade, pois assim, o risco de engasgo seria minimizado. No entanto, a carne de cação pode apresentar um risco à saúde muito maior, devido à presença de metais pesados.
Por ter uma vida longa e estar no topo das teias alimentares, esses animais acumulam alguns compostos presentes ao longo da cadeia, desde os organismos unicelulares até os grandes peixes que são predados pelos tubarões. Quanto mais longa a vida de um tubarão e mais perto da costa ele se alimentar, maiores as concentrações de substâncias perigosas à saúde humana encontradas em sua carne.
As agências de proteção ambiental e a de alimentos e medicamentos dos Estados Unidos (EPA e FDA) desaconselham o consumo de tubarões por mulheres que estão grávidas ou pretendem engravidar, mães lactantes e crianças, devido às altas concentrações de mercúrio encontradas nas análises desse pescado, assim como o consumo de outros peixes predadores de topo, como peixe-espada e alguns atuns.
E enfim....
O consumo de cação em si, não é crime, mas dificilmente poderia ser considerado como sustentável.